sexta-feira, 14 de maio de 2010

A escolha do carpinteiro

A porta pesada rangeu nas dobradiças enquanto empurrava para abrir. Com poucos passos Ele atravessou a oficina silenciosa e abriu a veneziana de madeira para ajustar os raios de luz do sol que penetravam na escuridão, pintando uma caixa da luz do dia no chão sujo.

Ele olhou ao redor na oficina de carpintaria. Ele ficou parado por um momento no abrigo do pequeno aposento que guardava tantas doces lembranças. Balançou o martelo em sua mão. Passou seus dedos entre os dentes pontudos da serra. Bateu na madeira gasta e suave do cavalete. Ele veio para despedir-se.

Era hora dEle ir embora. Ele ouviu algo que O fez saber que era hora de ir. Então veio pela última vez sentir o cheiro de serragem.

A vida era calma aqui. A vida era tão... segura.

Aqui Ele passou horas incontáveis de contentamento. Neste chão sujo brincou como uma criança que começa a andar enquanto o seu Igual trabalhava. Aqui José O ensinou como segurar um martelo. E nesta bancada Ele construiu sua primeira cadeira.

Eu fico curioso para saber o que Ele pensou quando deu a última olhada ao redor do aposento. Talvez tenha parado por um momento ao lado da bancada olhando para as pequenas sombras projetadas pela escultura. Talvez Ele escutasse enquanto vozes do passado enchiam o ar.

“Bom trabalho, Jesus.”

“José, Jesus – venham e comam!”

“Não se preocupe, senhor, vamos terminá-lo a tempo. Vou pegar Jesus para me ajudar.”

Fico curioso para saber se Ele hesitou. Fico curioso para saber se Seu coração estava ferido. Fico curioso para saber se Ele rolou um prego entre seu dedão e seus dedos, antecipando a dor.

Foi na oficina de carpintaria que Ele deve ter dado início a seus raciocínios. Aqui conceitos e convicções foram entrelaçados para formar a estrutura do Seu ministério.

Você quase pode ver as ferramentas da sua profissão em Suas palavras enquanto Ele falava. Você pode ver a segurança de um prumo quando Ele chamava a atenção para padrões morais. Você pode ouvir o som da plaina enquanto Ele apelava para a religião para cortar fora as tradições desnecessárias. Você pode imaginar o conforto daquele que reúne a madeira quando Ele exige lealdade nos relacionamentos. Você pode imaginá-lo com um lápis e um livro-razão enquanto Ele argumenta a honestidade.

Foi aqui que Suas mãos humanas deram forma à madeira que Suas mãos divinas criaram. E foi aqui que Seu corpo amadureceu enquanto Seu espírito aguardava o momento certo, o dia certo.

E agora esse dia chegou.

Deve ter sido difícil ir embora. Apesar de tudo, a vida de um carpinteiro não era má. O negócio era bom. O futuro era brilhante e seu trabalho era agradável.

Em Nazaré, Ele era conhecido somente como Jesus, o filho de José. Você pode ter certeza que Ele era respeitado na comunidade. Era bom com suas mãos. Tinha muitos amigos. Era o favorito entre as crianças. Podia contar uma boa piada e tinha o costume de encher o ar com uma risada contagiosa.

Fico curioso para saber se Ele queria ficar. Ele poderia fazer um bom trabalho aqui em Nazaré. Estabilizar-se. Criar uma família. Ser um líder municipal.

Fico curioso porque sei que Ele já havia lido o último capítulo. Ele sabia que os pés que iriam pisar fora da sombra segura da oficina de carpintaria não iriam descansar até serem perfurados e colocados em uma cruz romana.

Note, Ele não tinha que ir. Ele tinha uma escolha. Poderia ter ficado. Poderia ter ficado com sua boca fechada. Poderia ter ignorado o chamado ou pelo menos o adiado. E se Ele tivesse escolhido ficar, quem saberia? Quem O teria culpado?

Ele poderia ter voltado como homem em outra época quando a sociedade não fosse tão volátil, quando a religião não fosse tão estragada, quando as pessoas ouvissem melhor.

Ele poderia ter voltado quando as cruzes estivessem fora de moda.

Mas Seu coração não o deixaria. Se houvesse hesitação por parte de Sua humanidade, seria dominada pela compaixão de Sua divindade. Sua divindade ouviu as vozes. Sua divindade ouviu os choros desesperados dos pobres, as acusações amargas dos desamparados, o desespero daqueles que estão tentando se salvar.

E Sua divindade viu os rostos. Alguns franzidos. Alguns chorando. Alguns escondidos atrás de véus. Alguns obscurecidos pelo medo. Alguns sérios e penetrantes. Alguns sem expressão com aborrecimento. Desde o rosto de Adão até o rosto do bebê nascido em algum lugar do mundo enquanto você lê estas palavras, ele viu todos.

E você pode ter certeza de uma coisa. Entre as vozes que encontraram seu caminho para dentro daquela oficina de carpintaria em Nazaré estava a sua voz. Suas orações silenciosas pronunciadas em travesseiros manchados com lágrimas foram ouvidas antes de serem ditas. Suas perguntas mais profundas sobre morte e eternidade foram respondidas antes de serem perguntadas. E sua necessidade mais extrema, sua necessidade de um Salvador, foi conhecida antes mesmo de você pecar. Ele viu seu rosto na hora que você soube dEle pela primeira vez. Ele viu seu rosto envergonhado na hora que você caiu pela primeira vez. O mesmo rosto que olhou de volta para você por esse espelho de manhã olhou para Ele. E foi suficiente para matá-lo.

Ele foi embora por sua causa.

Ele deixou sua segurança com seu martelo. Ele pendurou sua tranqüilidade no cabide com seu avental de pregar. Ele fechou as venezianas da janela da sua juventude brilhante e trancou a porta do conforto e da facilidade do anonimato.

Uma vez que Ele podia pagar por seus pecados mais facilmente do que podia suportar pensar em Seu desespero, Ele escolheu ir embora. Não foi fácil. Deixar a oficina de carpintaria nunca tem sido.